BRASÍLIA - O governo Lula faz os últimos ajustes em uma medida provisória (MP) para promover uma ampla mudança no setor elétrico que, no curto prazo, terá como consequência aumentar as contas de luz de consumidores de classe média.
O projeto prevê a ampliação da tarifa social para isentar da conta de luz famílias de baixa renda que consomem até 80 kWh de energia por mês. Outras que consomem até 120 kWh por mês e têm renda per capita entre meio e um salário mínimo teriam um desconto. Ao todo, segundo o governo, 60 milhões de pessoas poderão ser beneficiadas. Procurado, o Ministério de Minas e Energia não quis comentar.
O programa social será pago com os encargos que incidem e encarecem as contas de luz dos consumidores do mercado regulado, ou seja, os residenciais e o pequeno comércio. O impacto estimado pelo governo é de que isso custará R$ 3,6 bilhões ou um aumento de 1,4% nas contas de luz. A consultoria privada Volt Robotics calcula um impacto maior, de R$ 7 bilhões.
“Para a grande maioria da população, o ano que vem é um ano de aumento de custo e eletricidade com o pacote, não é de redução, porque vai ter que pagar os R$ 7 bilhões. O benefício para o consumidor residencial que migrar para o mercado livre acontecerá apenas em 2028”, afirmou Donato Filho, diretor-geral da Volt Robotics.
MP ampliará tarifa social de energia e encargos recairão sobre conta de consumidores do chamado mercado regulado Foto: Wilton Junior/Estadão
Quando apresentou a proposta, no mês passado, o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, defendeu que os consumidores de classe média serão compensados com a abertura do mercado livre de energia elétrica e com uma redistribuição dos pagamentos dos encargos, transferindo parte dos custos para a grande indústria. Ele não disse, porém, que essa compensação, se ocorrer, só virá no futuro e será insuficiente para bancar a ampliação do programa social no curto prazo.
O governo Lula tem pressa em apresentar o programa, tratado como uma agenda positiva no momento em que a popularidade do presidente volta a ser afetada, desta vez pelas denúncias de fraude no INSS. Auxiliares do presidente chegaram a deixar operadores do mercado de energia de sobreaviso para a publicação da MP na última quinta-feira, o que acabou não acontecendo em meio a negociações políticas para atender o setor elétrico (leia mais abaixo).
Diferentes elos da cadeia da energia elétrica relataram ao Estadão que consideram bem-vinda a abertura do mercado livre aos consumidores residenciais e ao pequeno comércio — eles passarão a poder escolher, a partir de meados de 2027, os seus fornecedores de energia. Hoje, esse benefício só é acessível a consumidores de alta e média tensão, principalmente as grandes indústrias.
Com essa mudança, os consumidores poderão optar por fornecedores que ofereçam a energia mais barata e, principalmente, escapar da Conta de Desenvolvimento Energético (CDE), principal encargo que incide sobre as tarifas de energia e que banca subsídios a energias renováveis, o programa Luz para Todos e a eletrificação na zona rural, por exemplo.
Neste ano, o custo da CDE está estimado em R$ 40,6 bilhões, o que representa 13,83% do valor da conta de luz dos consumidores residenciais.
Hoje, os regulados são mais onerados do que os grandes consumidores de energia pela CDE, que varia de acordo com a tensão e a região do País. Pela lógica atual, os consumidores regulados seguirão pagando mais e de forma crescente, para em 2030 responder por dois terços dessa conta.
Na MP, o governo propõe congelar o rateio no pagamento da CDE no atual patamar pelos próximos cinco anos e, a partir de 2038, os grandes consumidores passariam a pagar uma parcela maior, proporcionalmente igual à dos residenciais e do pequeno comércio. Ou seja, uma transição que durará mais de dez anos.
O ganho desse novo rateio não será percebido pela classe média tão cedo. Ela seguirá no mercado regulado até 2028, quando poderá optar por migrar para o mercado livre (no caso, os residenciais).
O único rebalanceamento de encargos que poderia atender à classe média no curto prazo seria a inclusão dos grandes consumidores no pagamento pela oferta de energia das usinas de Angra 1 e 2. Hoje, ele só é cobrado dos menores consumidores.
Uma pessoa do governo a par da medida provisória afirma que essa redivisão dos encargos de Angra 1 e 2 poderá reduzir, potencialmente, o peso sobre as contas de luz dos consumidores do mercado regulado em até R$ 2 bilhões por ano.
O impacto, porém, é minimizado por agentes do setor privado, que afirmam ser “irrelevante” o ganho e insuficiente para neutralizar o aumento estimado em até R$ 7 bilhões das novas despesas para financiar o programa social do governo Lula.
Fim de subsídio para fonte incentivada
O ministro Alexandre Silveira também mencionou, como compensação para a tarifa social, o fim de um subsídio oferecido à chamada geração “incentivada”, de energia eólica, solar, biomassa e de pequenas centrais hidrelétricas.
O tema divide o setor elétrico entre os defensores da medida — como o início de uma reorganização dos incentivos a fontes selecionadas — e os que são contra, alegando que projetos de geração de energia limpa iniciados nos últimos anos poderão se tornar inviáveis.
O benefício consiste num desconto de 50% pelo uso das redes de transmissão e distribuição de energia. Esse subsídio tem um custo alto para as contas de luz dos consumidores do mercado regulado, em torno de R$ 11 bilhões por ano, de acordo com estimativa feita pela consultoria PSR Energy.
Na MP, o governo limita esse subsídio apenas aos contratos vigentes. Para os contratos novos, ele deixa de existir. Ou seja, geradores, comercializadores e consumidores de energia renovável vão perder o desconto.
Com isso, a PSR entende que pode haver uma economia de cerca de R$ 7,3 bilhões nessa despesa, reduzindo o encargo sobre os pequenos consumidores de energia — novamente, o peso é maior para os residenciais e para o pequeno comércio.
A medida, no entanto, já é alvo de mobilização dos setores afetados, que tentam derrubar a mudança no Congresso ou criar uma transição, mantendo o benefício por mais tempo.
Segundo o presidente da Associação Brasileira das Comercializadoras de Energia (Abraceel), Rodrigo Ferreira, “não é boa solução alterar a lógica de produtos de energia já vendidos”.
Isso porque muitos dos empreendimentos de energia solar e eólica foram erguidos usando como garantia os contratos de venda de eletricidade que, com o fim do subsídio, terão custo mais alto.
“Não é papel do consumidor de energia elétrica financiar programas sociais do governo. (A ampliação da tarifa social) deveria vir do Orçamento da União”, diz Ferreira. Ele também argumenta que a medida pode gerar brigas judiciais no setor, com compradores e vendedores de energia questionando os novos preços.
Para a PSR, contudo, a mudança será benéfica para os consumidores, já que o subsídio, na visão da consultoria, não faz sentido. Isso porque as fontes renováveis já conseguiram reduzir custos e não precisam mais de incentivos para aumentar a oferta de energia.
“Naturalmente os agentes podem interpretar esta medida como uma ‘quebra de expectativa de direito’ e buscar suas proteções no Congresso ou na Justiça. Sem dúvidas, esta é a medida mais polêmica do projeto e também a de maior impacto econômico”, afirma a consultoria, em análise sobre a MP.
Sob pressão, políticos governistas e auxiliares do presidente Lula já admitem, sob reserva, que o fim do subsídio pode não ser aprovado. A prioridade é proteger a tarifa social e a abertura do mercado livre — as medidas mais populares do pacote. Já o início de uma reorganização dos incentivos ao setor poderia ser abandonado.
Contribui para esse cálculo político o fato de o efeito prático de redução nas contas de luz não aparecer antes dos próximos cinco anos — esta é a média de vigência dos atuais contratos de energia renovável.
Negociação política mobiliza setor de energia
O atraso na publicação da MP abriu uma brecha para uma nova rodada de negociações entre os setores atingidos e o governo.
Há o pleito para que pelo menos um período de transição seja estabelecido para o fim do subsídio da energia incentivada, para que não haja uma corrida pela assinatura de novos contratos ou a renovação às pressas dos contratos atuais, ainda sob as regras vigentes.
O Estadão apurou que o governo tenta ainda amarrar a publicação da MP com a votação, pelo Congresso, dos vetos do projeto das eólicas offshore, que traz “jabutis” que vão encarecer a conta de luz e que são do interesse de geradores de energia a partir de termelétricas movidas a gás, carvão e também de pequenas centrais hidrelétricas.
A articulação do governo é para que o Congresso mantenha o veto feito pelo presidente Lula, mas atenda, parcialmente, os setores que brigam pela manutenção dos seus jabutis na conta de luz. A negociação está em curso e pode envolver a atual MP de reorganização do setor elétrico ou uma nova MP, específica sobre o tema.
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