A decisão do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, de inserir as digitais da família Bolsonaro no anúncio de tarifas de 50% sobre produtos brasileiros dá ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva um mote narrativo que serviu de empurrão a outros governos mundo afora que entraram na mira do americano. Em países como Canadá, México e Austrália, o discurso de soberania nacional na esteira de ataques de Trump impulsionou grupos políticos em eleições ou pesquisas de opinião.
O petista ganha, na visão de analistas, a prerrogativa de alimentar um nacionalismo que a esquerda brasileira tinha perdido, além de pintar a oposição como “entreguista”. Na esteira da carta enviada a Trump na quarta-feira, Lula conseguiu enorme engajamento ao rebater o presidente daquele país com base na ideia de soberania. Os apoiadores do governo, que já tinham despertado com o embate “ricos contra pobres”, voltaram a endossar o petista com vigor.
O 'efeito Trump' — Foto: Editoria de Arte
O 'efeito Trump' — Foto: Editoria de Arte
Lula também pode se animar com experiências de outros países que já entraram na mira de Trump. No Canadá, que compartilha extensa fronteira com os EUA, o Partido Liberal enfrentava uma crise, mas conseguiu reverter o cenário e vencer a eleição, emplacando o primeiro-ministro Mark Carney. A vitória se deu num contexto de ameaças radicais de Trump, com direito a promessas de anexar o território canadense e transformá-lo em um estado americano.
A campanha do partido do ex-primeiro-ministro Justin Trudeau se concentrou em fazer contraponto ao trumpismo, exacerbando um nacionalismo atípico para um país no qual influências britânicas e francesas se misturam. Até o hóquei, febre nacional que tem uma liga compartilhada entre as duas nações, virou instrumento para o embate: Trudeau bravejou o bordão “cotovelos para cima!” após dizer que o país seria diplomático sempre que possível, mas que “lutaria quando necessário”.
Outro exemplo de equilíbrio entre diplomacia e nacionalismo é o de Claudia Sheinbaum, no México. Eleita pouco antes do republicano, a presidente virou referência na forma de lidar com as bravatas trumpistas. Com abertura ao diálogo com o vizinho, conseguiu reverter tarifas anunciadas sem deixar de ser firme na defesa dos interesses nacionais, no contexto de caça a imigrantes pelo governo Trump. Sheinbaum chegou até a ser elogiada pelo americano. O resultado da estratégia se refletiu nas pesquisas: ela atingiu 85% de aprovação, patamar atípico em um mundo onde presidentes são mais rejeitados que aprovados.
Na Austrália, o Partido Trabalhista do primeiro-ministro Anthony Albanese conseguiu se reerguer depois de ir mal nas pesquisas. O “efeito Trump” fez com que o principal opositor, Peter Dutton, fosse comparado ao americano e decaísse na campanha. O resultado foi a vitória trabalhista em maio.
— Vamos pensar no governo como uma família. Tem muitas brigas, disputas, mas quando alguém de fora agride alguém da família, ela se une contra esse agressor externo. O que aconteceu agora faz com que boa parte dos setores brasileiros se una na defesa do país — analisa o presidente do Instituto Locomotiva, Renato Meirelles. — Trump deu um presente a Lula que deixa a oposição na defensiva pela segunda semana consecutiva, depois do caso IOF.
O cientista político Christian Lynch também vê no movimento de Trump um brinde a Lula em diferentes aspectos.
— A modorra que é o atual governo, que gira muito em torno da figura do Lula e não tem discurso a não ser requentar pautas de 15, 20 anos atrás, ganhou dois presentes. Primeiro o movimento do Hugo Motta no caso IOF, na semana passada, e agora isso do Trump — afirma o professor do Iesp-Uerj. — Não aconteceu nada de tão importante na política brasileira desde a tentativa de golpe. Isso é péssimo para a direita, coloca a oposição na defensiva. Lula pode jogar tudo de ruim na conta do Trump e do Bolsonaro. Tarcísio de Freitas passa a ser classificado como um “vendilhão” da pátria.
Há também um significado mais amplo, avalia Lynch, que tem histórico de pesquisas sobre o pensamento político brasileiro. A esquerda daqui, segundo ele, andava muito “chocha”. Vivia como se a globalização da década de 1990 não tivesse entrado em crise, com discursos pouco apelativos.
— Essa derrubada do Motta e agora o Trump permitiram à esquerda se mobilizar em torno de uma pauta que tinha sido abandonada durante a globalização, cujo vetor era um cosmopolitismo liberal. Com a crise da globalização, esse cosmopolitismo vem dando lugar a um nacionalismo, uma lógica que a direita vinha adotando enquanto a esquerda ainda estava em pautas mais individualistas — avalia.
Referência histórica
Lula, agora, remete ao discurso nacionalista histórico de uma esquerda diferente da dele, mais ligada ao trabalhismo de Getúlio Vargas, João Goulart e Leonel Brizola. Historiador com foco em histórica econômica e autor do livro “Democracia negociada: Política partidária no Brasil da Nova República”, Leonardo Weller recorda que o país tem uma tradição de independência diplomática e que o nacionalismo ressoa tanto na esquerda quanto na direita.
— O que Trump está fazendo é uma ingerência que, de modo tão explícito, nunca aconteceu na relação bilateral. É um dedo no olho, e é muito difícil dizer que um presidente de outro país está fazendo isso para o bem do Brasil, especialmente se houver impacto econômico — afirma o professor da FGV EESP. — Trump foi impulsivo, e mesmo se voltar atrás já tem efeito político. O discurso do Lula para o ano que vem, de “luta de classes”, ganha o adendo de um discurso nacionalista, de que a extrema-direita está mancomunada com os Estados Unidos.
A forma como Trump comunicou as tarifas jogou no colo de Bolsonaro a responsabilidade pela medida prejudicial à economia brasileira, observa o vice-presidente global da Open Society Foundations, Pedro Abramovay.
— Desde o período de queda brusca de popularidade, este é o momento em que o Lula 3 mais se encontrou em um discurso. No início do governo tinha a questão da “reconstrução”, mas depois o governo estava meio perdido — avalia. — Nos outros países, a extrema-direita foi prejudicada porque o outro lado conseguiu se agarrar a um discurso de soberania, e a extrema-direita ficou quase como traidora da pátria. Trump erra feio ao abrir a carta falando do Bolsonaro. Ele passa a responsabilizar o Bolsonaro pelas tarifas, dá a ideia de que vai ajudar o amigo e, para isso, castigar os brasileiros.
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